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Quais os caminhos possíveis para o impacto coletivo?

By 26 de Fevereiro, 2020Outubro 27th, 2023No Comments

Eu sinto que ante os eventos da nossa sociedade: desigualdade, crise econômica, desastres ambientais, mudanças climáticas, o momento urge um olhar crítico e reflexivo para cada um de nós repensarmos como nos engajamos no nosso agir, consumir, etc de modo a gerar transformação positiva.

Foto: Caroline Busatto

Depois de repensarmos o nosso agir, o próximo passo é nos reunirmos em como gerar impacto positivo. Impacto coletivo é um termo cunhado pela Foundation Strategy Group (FSG), que tem como papel suportar as organizações do terceiro setor a desenhar suas estratégias para as questões sociais e ambientais. Gosto de estender esse olhar não apenas para o terceiro setor ou para as empresas, mas para aqueles que sentem que seu agir pode gerar uma transformação.

Há um par de anos tive a chance de participar de um evento de Impacto Coletivo organizado pela FSG — organização que deu origem ao conceito de valor compartilhado, co-criado com a Nestlé — empresa na qual eu trabalhei por quase sete anos. Somado a isso, a FSG foi co-fundada pelo Michael Porter, uma grande referência da estratégia e do marketing que também me influenciou quando ocupei cadeiras dessa matéria.

A metodologia de impacto coletivo foi articulada inicialmente em 2011 na Stanford Social Review por John Kania, diretor da FSG e Mark Kramer, co-fundador da FSG. Em grandes linhas, propõe que “nenhuma organização possui a habilidade para resolver nenhum problema social em escala por si própria e que “a metodologia de impacto coletivo é uma poderosa abordagem para colaboração de setores distintos que está atingindo efeitos mensuráveis nas maiores questões sociais.” — Site da FSG

A metodologia propõe cinco condições de sucesso coletivo:

1. Definir uma agenda comum

Ter um visão comum da mudança esperada e do problema a ser resolvido e uma abordagem de como resolvê-lo.

2. Métricas compartilhadas de mensuração de resultado

Mensurar o progresso de maneira consistente para alinhar esforços e manter senso de responsabilidade.

3. Atividades que se reforçam mutuamente

Cada parte contribui com uma atividade distinta que reforça as outras.

4. Comunicação contínua

Comunicação aberta e consistente para construir confiança, garantir objetivos mútuos e criar motivação comum.

5. Organização “Espinha dorsal”

Organização ou pessoa atuando como espinha dorsal para coordenar a participação de todos.

Após ter participado do seminário, ouvido várias histórias, refletido muito sobre teoria e prática, e hoje passado por um aprofundamento em fenomenologia, complexidade e outras disciplinas, proponho algumas reflexões:

A primeira é uma profunda concordância que, dado a complexidade das questões sociais e ambientais, as soluções somente são possíveis através de um esforço conjunto e vários atores. Para tanto, a metodologia do impacto coletivo pode ser um framework possível.

A segunda ponderação é que para ser possível falar em impacto coletivo é necessário inicialmente que cada indivíduo e especialmente as lideranças de cada organização tenham muita clareza de seus propósitos — enquanto indivíduos e enquanto organização. É preciso transcender algumas questões individuais e compreender que impacto coletivo não é sobre protagonismo e sim sobre colaboração. Parece ser muito simples a afirmação, mas falo a partir da minha experiência ainda precisamos fomentar e desenvolver o ambiente e a mentalidade de colaboração. Somente se isso ocorrer, as pessoas serão capazes de atuar na escala de colaborar com organizações e atores distintos.

Precisamos transcender a visão da teoria de evolução das espécies um pouco distorcida: para um ganhar o outro tem que perder. Nas questões sociais e ambientais todos perdem, direta ou indiretamente. Exemplifico: diretamente são as populações ribeirinhas que são impactadas quando alguma ação do homem altera o curso do rio e indiretamente é quando alguém investe em carro blindado visando maior segurança para viver em sociedades com alto nível de desigualdade.

A terceira ponderação é que a ótica da teoria da complexidade enriquece a metodologia de impacto coletivo. E esse olhar é para mim o viés mais relevante e deveria ser o ponto de partida. Ao invés de propor que nenhuma organização possui a habilidade para resolver nenhum problema social em escala por si própria, eu diria que nenhuma organização tem habilidade de resolver nenhum problema social que é por natureza complexo por si próprio.

Essa nuance primeiro traz a luz a questão da complexidade e nos dá chance de nos perguntarmos: será que o problema que estamos endereçando é exatamente esse? Será que não há nuances que perdemos de vista? Será que há alguma questão ainda não levada em conta que não permitiu que o problema se resolvesse? O Artigo Embracing Emergence: How Collective Impact Addresses Complexity traz luz a questão da complexidade para os problemas sociais e sugere que não se deve esperar soluções simplistas de causa-efeito. Mas, mais uma vez, eu estenderia essa nuance à toda formulação do problema. O outro ponto relevante que me chama atenção é a dita escala: cada sociedade e organismo social é distinto e, portanto, parece um caminho simplista que hajam soluções em escala. O que é possível é adaptar a diferentes realidades, mas as soluções dos problemas sociais precisam ser locais.

Também gosto desse olhar de “problemáticas vivas”: a desigualdade social e a degradação ambiental, elas surgem pela ação ou não ação das pessoas e, portanto, envolve-las e engajá-las verdadeiramente na solução é vital e extremamente desafiador. Como colocar diversos atores com interesses distintos, olhando para o mesmo problema e ao mesmo tempo cada um com sua visão do problema. Se nas organizações encontrar essa visão comum já é desafiador, com atores diferentes a complexidade se potencializa. Nas palavras de Goethe, “…. arriscamos enxergar e, ainda assim enxergar sem ver as coisas.”

Após ter estudando a metodologia de impacto coletivo, ficado com algumas lacunas e questionamentos, encontrei em quatro autores um caminho vivo e orgânico que ressoaram fortemente com o que experienciei e intuitivamente achei ser mais rico que apenas a metodologia e que também posicionam aquele que está tentando solucionar o problema com um papel ativo.

A primeira delas é a Patricia Shaw. Ao propor de trabalharmos com a ótica do improviso, respeitarmos a natureza humana e sermos capazes de engajar-nos em conversas significativas e termos um olhar participativo do problema, somos capazes de ampliar nossa compreensão da realidade:

“As representações não conseguem nunca capturar a real complexidade porque a complexidade é um fluxo no tempo e não uma imagem estática ou modelo.”

O segundo e terceiro são Allan Kaplan e Sue Davidoff, com o seu Ativismo Delicado:

“Dada essa imagem de simultaneidade, da miraculosa delicadeza da dinâmica que desdobra o todo, temos que a real “intervenção” que abre a situação para mudanças é a muito simples e humana arte de conversar. Ao se iniciar uma conversa, cada protagonista é chamado a se abrir para enxergar a situação de um modo diferente, a aprender sobre outro, e na medida em que isso é feito, a situação muda (na verdade ela já está diferente desde quando foi vista de maneira diferente), e na medida em que a situação se abre, cada protagonista se abre e a situação começa a se transformar. A conversa — um tipo de reciprocidade viva de observação.”

“Realmente prestar atenção significa prestar atenção ao todo. Significa estar sempre olhando para a integridade maior dentro da qual as partes encontram seu sentido. Significa simultaneidade mais do que causa e efeito. Prestar atenção ao todo significa buscar o sentido, significa encontrar a interconectividade, as relações, as necessidades de transformação, as dinâmicas de pertencimento e separação que vivem entre as coisas, assim como a atividade, o fluxo que as une.”

E também Kaplan com seu Artistas do Invisível

“As dinâmicas de poder, a complexidade dos relacionamentos, a qualidade da liderança, a compreensão que a organização tem — ou não tem — de sua identidade e lugar no mundo; o sentimento de equipe ou o conflito ou hierarquia, o jogo interno de dependência e independências; a idade, a conexão com o contexto, a qualidade do impacto e da interação — todos esses fatores formam a meada invisível, a rede ou teia de campos e formas que formam e padronizam o organismo na sua totalidade sistêmica.”

E por último concluo com Max Neef que me fez compreender tanta coisa, o primeiro trazendo à tona a questão de iniciar pelos indivíduos:

“Desenvolvimento social e pessoal são inseparáveis. Portanto, seria irracional esperar que um é automaticamente a consequência do outro. Uma sociedade sadia deve lutar sobretudo pelo desenvolvimento de cada pessoa e da pessoa integral. “

E o segundo trecho trazendo o poder da “escala humana”:

É precisamente esses espaços sociais e físicos: família, grupos, comunidade e o local, que possuem uma escala humana distinta, que é a escala onde o social não anula o individual, mas precisamente o individual é capaz de empoderar o social.

Referências:

Artistas do Invisível: o processo social e o profissional de desenvolvimento. Allan Kaplan. Instituto Fonte.

Ativismo Delicado — Uma abordagem Radical para Mudanças. Allan Kaplan e Sue Davidoff — Proteus Initiative

Changing Conversations in Organizations: A Complexity Approach to Change. Patricia Shaw — Routledge

Collective Impact –John Kania & Mark Kramer — Stanford Social Innovation Review

Collective Impact Convening — FSG — Boston, Maio de 2017.

Conversational Inquiry as an Approach to Organization Development — Patricia Shaw — Journal of Innovative Management

Foundation Strategy Htoup — Site: https://www.fsg.org

Human Scale Development : Conception, Application and Further Reflections — Manfred A. Max-Neef

Embracing Emergence: How Collective Impact Addresses Complexity. — John Kania & Mark Kramer — Stanford Social Innovation Review

Working Live: taking a lead in the midst of complexity. Patricia Shaw